Publicado em: Educação Musical

Cecília Conde e Noni Ostrower  –  Palestra ” O compromisso do artista com a educação” – 2010

“O que eu mais viso em educação musical é sensibilizar o indivíduo para a música, para o som, para o ritmo. Seria propiciar a consciência de que ele é um ser musical, que ele tem um instrumento fantástico, que é a voz, o corpo, que ele pode se expressar numa melodia, através do gestual, do ritmo. Então, é estar atento a ele e aos seus sons internos e a ele em relação à natureza e aos outros.

O meu conceito de educação musical é sensibilizar o indivíduo para a sua paisagem sonora, tanto externa como interna, conscientizá-lo do potencial que ele tem. Acho que se nós fizéssemos isso estaríamos cumprindo o nosso papel de educadores; depois, quem vai fazer o virtuose, o artista, são os conservatórios da vida. Creio que a principal finalidade de levar a educação para todo segmento da educação – primeiro, segundo e terceiros graus – é desenvolver essa inteligência sensível musical, a maneira de se comunicar não verbal de apreender, perceber de uma outra forma, chegando a transcendência. No momento que você se liga no som, você se liga no seu interior, você cria outra dimensão “

Cecilia Conde – 1982


                                                 

Cecília Conde será sempre uma lembrança animadora para mim enquanto eu viver

Ana Mae Barbosa

 

Conheci Cecília através de Noemia Varela minha iniciadora em Arte/Educação. Estagiei na Escolinha de Arte do Recife (EAR) em torno de 1957. Pouco tempo depois D. Noemia deixava a Escolinha que criara em 1953 com o apoio de um grupo grande de intelectuais de Pernambuco entre eles os irmãos Augusto e Abelardo Rodrigues. Noemia Varela foi então para o Rio trabalhar com Augusto Rodrigues na diretoria da Escolinha de Arte do Brasil (EAB) Abandonou seu lugar de professora da Escola de Belas Artes da Universidade de Recife, hoje UFPE e partiu para a aventura de criar o Curso Intensivo de Arte na Educação (CIAE) na EAB. Entretanto me encarregou de coordenar os estágios dos alunos de Belas Artes que eram feitos na EAR. Escrevia-me constantemente e falávamos ao telefone por horas Já conhecia Cecilia ao longe pelas descrições de D. Noemia quando surgiu a ideia da ida dela ao Recife para dar um curso.

Cecilia foi a primeira pessoa  que eu acompanhei como professora convidada importante de fora do Recife e anos depois ela me disse que aquela tinha sido a primeira vez que foi convidada a dar um curso fora do Rio de Janeiro. Eu estava muito nervosa e preocupada pois a convidei para jantar e nunca havia recebido ninguém em minha casa de recém casada. Eu não tinha ainda sofás que estavam sendo feitos por um marceneiro sofisticado com design do Aloisio Magalhães a quem o artesão admirava muito e por isso furou todos os prazos de entrega.  Mas no Nordeste as cadeiras nas varandas sempre nos salvam das salas de estar convencionais.

Cecília me pediu para levar uma senhora amiga da família dela que morava no Recife de quem não lembro o nome mas era muito culta e simpática. Cecília era linda e aquela senhora a tratava como a uma porcelana. Ela sabia que era a primeira vez que Cecília viajava sozinha para trabalhar, eu não sabia. Comentamos muito sobre o curso que foi um sucesso. A noite correu muito bem e iniciamos uma amizade que durou toda a vida Meu último contato com Cecília foi através de um orientando de Rejane Coutinho. Trocamos recados quando ela, embora doente, recebeu magnificamente para uma entrevista Sidiney Paterson de Lima  que estava escrevendo uma tese, a qual já terminou brilhantemente, sobre o CIAE(1961), curso que foi uma universidade na EAB. (até 1981 com D. Noemia)

Cecília foi uma das mulheres mais inteligentes, proativa e intelectualmente sedutora que conheci.

Sua pesquisa no Morro da Mangueira é antológica e válida até hoje Era um tapa na cara epistemológico ver aquelas crianças cantando e dançando nos ensaios da Mangueira com enorme desenvoltura corporal e sonora e depois vê-las com a professora de Música na escola cantando “ o meu chapéu tem seis pontas”. O que elas faziam na Escola de Samba era anos luz mais avançado do que faziam na Escola Pública.

Nos encontrávamos frequentemente nos Congressos que são para mim fonte de ampliação de conhecimento e afetividade além de servirem como reforço de ego cultural para nós professores os mal tratados do sistema social. Achávamos graça pois algumas vezes, quando ambas éramos gordas, nos Congressos, as pessoas nos confundiam. Ela depois voltou a ser magra, eu continuo gorda. Também convidávamos uma a outra para encontros, congressos, cursos, etc

Conto no meu último livro(com Vitória Amaral) “Mulheres não devem ficar em silencio” um episódio engraçado Eu estava testando a recepção dos professores acerca da imagem de Arte , aliada a expressão autônoma da criança  na sala de aula , isto é a ampliação dos ideais modernistas para incluir os modos de pensar pós-modernistas . Era o início das experimentações com a Abordagem Triangular. Estávamos em um Congresso em Santa Catarina nos anos 80. A audiência ficou revoltada, me chamou até de traidora.  Como era possível falar em leitura de obra de Arte com crianças e macular a virgindade expressiva da criança? Os outros palestrantes não estavam na plateia. Depois disto cada convidado que falava eles/as perguntavam o que achava de mostrar obra de Arte para criança. FaygaOstrower que já havia ensinado História da Arte a operários aceitou a ideia .

Quando perguntaram a Cecilia ela respondeu que era interessante a criança ouvir música, que a mãe dela a levava quando era criança a concertos, mas que não recomendava como  um processo sistemático. Defendi minha ideia dizendo: –  Mas, você Cecília é de elite, imagine uma criança ou adolescente que não tem livros nem revistas em casa, onde ele vai ver Arte? Cecília replicou: -Você também é de elite. Eu concordei. Imediatamente disse sim, eu sou Acabou a mesa e fomos,ela, D.Noemiae eu almoçarmos juntas. Foi uma fofoca enorme nos bastidores comentando o que pensaram ser uma briga.

Aprendi muito sobre ensino de Música com Cecília Sempre tive uma relação “freudiana” com a Música. Minha mãe era pianista formada no Rio de Janeiro, em que Conservatório nunca cheguei a saber nem com quais professores particulares. Dava muitos concertos no Recife dos quais nunca participei pois quando ela morreu aos trinta e três anos eu tinha apenas seis. Lembro bem que ela planejava duas coisa para mim, me ensinar a tocar piano depois dos sete anos e me mandar fazer faculdade nos Estados Unidos onde meu pai que já havia morrido, estudara porque, dizia ela, lá valorizam as mulheres.

Fui criada pelos meus avós maternos que não podiam sequer ouvir tocar no rádio músicas eruditas que minha mãe tocava. Deram o piano e todos os discos. Minha avó nunca se recuperou da morte de minha mãe e eu cresci sem música.

Cecília e minha filha Ana Amália ainda adolescente ao se encontrarem em Minas Gerais foi amor à primeira vista, correspondido. Entretanto, Cecília não me perdoava eu não ter dado educação musical a Ana Amália e eu nunca antes havia percebido esta falha. Consertei meu erro com minha neta que foi criada em minha casa e hoje aos 20 anos toca percussão.

Por outro lado, Cecília além de uma profissional inventiva , arrojada, dedicada à Música fez Teatro também. Cheguei a vê-la em Belo Horizonte, atuando como atriz.

Eu a admirava muito como pessoa, pela sua fidelidade a amizade. Ela ganhou minha admiração e gratidão pela maneira carinhosa como tratou D. Noemia no episódio da pressão para ela se aposentar da EAB. Ela contratou D. Noemia no Conservatório e a tratava com muito respeito e amizade em um momento no qual pessoas influentes ditas amigas nada fizeram em favor de D. Noemia, pois sua oponente era uma mulher rica e poderosa politicamente.  O infeliz episódio que atingiu D. Noemia  era e é típico do resultado da luta de classes que envenena as Artes Visuais  mais que as outras artes .

Dei muitas aulas no Conservatório , inclusive uma disciplina no Mestrado que infelizmente fechou. A última vez que falei lá a convite de Cecília foi em uma homenagem a saudosa Fayga Ostrower.  Sempre que eu ia ao Rio nos passeávamos juntas, da última vez passamos a noite na Lapa. O mais difícil da velhice e ver que a cada amigo que morre nós morremos um pouco.

 

 Ana Mae Barbosa é uma pensadora afiada da educação brasileira. Responsável por elaborar a Abordagem Triangular (conhecer a história, fazer arte e saber apreciar uma obra), que trazia elementos da teoria freiriana para pensar o ensino de arte, ela foi uma das fundadoras da arte-educação no Brasil e é amplamente referenciada em escolas, museus e faculdades de pedagogia no país, na América Latina e no mundo.